MANIFESTO DE EDUCADORES E ESTUDANTES CONTRA A VIOLÊNCIA E A MORTE NO CAMPO BRASILEIRO
NÃO AO NOVO CÓDIGO FLORESTAL
“Viver é lutar.” Gonçalves Dias[1].
“Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização. (...) [Hoje] já não é admissível a um general vitorioso mandar fazer inscrições dizendo que construiu uma pirâmide com as cabeças dos inimigos mortos, ou que mandou cobrir as muralhas de Nínive com as suas peles escorchadas. Fazem-se coisas parecidas e até piores, mas elas não constituem motivo de celebração.” Antonio Candido[2].
Com profunda tristeza e indignação, nós, trabalhadores da educação, estudantes, pesquisadores e pessoas comprometidas com a formação humana emancipadora, justa e igualitária, homens e mulheres que reconhecem e questionam o mundo, considerando o conhecimento produzido pela humanidade em busca de uma ação transformadora no sentido da afirmação da vida, não podemos aceitar em hipótese alguma e tampouco nos calar diante da morte e da barbárie que se manifesta contra os lutadores do povo no campo brasileiro. Os cinco assassinatos ocorridos em sequência nas últimas semanas no Pará e em Rondônia, que evocam aqueles que também morreram por defenderem a vida e a justiça no país, atestam que o inadmissível continua acontecendo no Brasil, e com requintes de crueldade típicos de tempos em que atos bárbaros estavam na esfera da legalidade.
Diante dos mortos que tiveram as orelhas decepadas, como assinatura perversa do desmando e do arbítrio ainda latente no interior da sociedade brasileira, aflora o sentimento de indignação e angústia, porque fica evidente o caráter regressivo da vida social que mostra sua face de atraso e desagregação como avesso do progresso civilizatório, apregoado contraditoriamente por setores tradicionalmente retrógados e conservadores da vida nacional desde suas origens: latifundiários e ruralistas, travestidos em empreendedores da modernidade no setor agrário do país que utilizam “a pistolagem como estratégia empresarial” e fazem andar de mãos dadas a alta tecnologia do agronegócio e os métodos mais primitivos e truculentos dos senhores de engenho e coronéis.
Entre os cinco mortos, estão pessoas que conheciam profundamente a vida da floresta, assentados que compartilhavam seus conhecimentos e sua produção sustentável com a comunidade universitária, representada pela Universidade Federal do Pará (em especial as ações do Campus Universitário de Marabá e do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural), com a qual desenvolviam projetos nacionais e internacionais de cooperação científica na construção de alternativas sustentáveis e do combate ao desmatamento na Amazônia. Maria do Espírito Santo da Silva, que se graduou no início de 2011 em Pedagogia do Campo pela UFPA, e o marido, José Cláudio Ribeiro da Silva, eram lideranças importantes do PAE (Projeto Agroextrativista de Praia Alta Piranheira), em Nova Ipixuna, PA, modelo de assentamento sustentável da reforma agrária, adotado pelo INCRA na Amazônia, do qual fazia parte também Herenilton Pereira dos Santos, testemunha da execução do casal em 24 de maio, assassinado no dia 28 do mesmo mês. Adelino Ramos, assassinado em Rondônia no dia 26 de maio, era presidente do Movimento de Camponeses Corumbiara, e uma das lideranças do projeto no Assentamento Agroflorestal Curuquetê, lutava pela preservação ambiental e pela reforma agrária, e foi um dos sobreviventes do Massacre de Corumbiara, ocorrido em 1995, que resultou na morte de 11 camponeses e 1 criança. Marcos Gomes da Silva foi assassinado no dia 02 de junho e era acampado, juntamente com 20 famílias, em Sapucaia, na região de Eldorado dos Carajás, onde ocorreu, em 1996, o massacre de 19 militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra pela polícia do estado.
Maria do Espírito Santo da Silva, José Cláudio Ribeiro da Silva e Adelino Ramos sofriam constantes ameaças de morte em razão de sua luta por projetos ambientais e pela reforma agrária, projetos que constituíam um obstáculo significativo ao desmatamento feito pelos madeireiros e latifundiários do Pará, Rondônia e Acre. Essas ameaças se cumpriram exatamente no momento da aprovação do Novo Código Florestal na Câmara dos Deputados em 24 de maio. O novo Código propõe a transferência do controle do desmatamento para estados e municípios; a anistia das multas aplicadas a crimes de degradação ambiental; a retirada da referência à Lei de crimes ambientais (Lei nº 9.605/98); a isenção de manter a reserva legal nos limites da lei em propriedades de até quatro módulos fiscais, o que abre as portas ao desmatamento de 69.245.404 hectares de florestas nativas. A luta desses companheiros, que estava ligada à vocação da pesquisa universitária em favor da vida, não pode ser desvinculada da crítica profunda, responsável e séria ao Novo Código Florestal.
Assim, aqui, manifestamos, em nome desses companheiros que já não podem intervir diretamente, nossa discordância veemente em relação à forma do Novo Código Florestal, afim de que seja reformulado no Senado Federal, onde se faça ouvir, dessa vez, não as vaias dos ruralistas à luta e morte dos assentados pela preservação da floresta e pela justa e imperiosa reforma agrária no país, mas a voz daqueles que corajosamente morreram defendendo que um mundo outro deve ser possível, se construído por nós. A verdade dessa luta é mais forte que a imagem deformada e nociva que parte da mídia brasileira passa à sociedade acerca dos que lutam por reforma agrária e preservação ambiental.
Esses assassinatos, a despeito de toda sua força e crueldade, fazem reviver a memória de todos aqueles que morreram pela construção da justiça no campo. Como educadores, não podemos deixar de nos posicionar ao lado daqueles que lutam por vida digna, educação e terra, aqueles que morreram, aqueles que sofreram ameaças, humilhações e mutilações, como o professor e graduado em Licenciatura em Educação do Campo da UnB, Paulo César da Costa, que foi ameaçado de morte e teve sua orelha cortada por fazendeiros em 2005, em área sob a jurisdição do INCRA, que hoje constitui o Assentamento Pátria Livre, em Santa Catarina. O crime cometido contra esse egresso da Universidade de Brasília está em julgamento e aguarda decisão judicial em primeira instância ainda este ano. Em nome de nossos estudantes e pesquisadores da Educação do Campo, terminamos este manifesto com as palavras de uma das educandas, hoje graduada da primeira turma do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UnB, em parceira com o Instituto Técnico de Pesquisa e Capacitação da Reforma Agrária (ITERRA), Carina Adriana Waskievicz:
José Cláudio Ribeiro da Silva “Zé Castanha”
Maria do Espírito Santo da Silva
Adelino Ramos “Dinho”
Herenilton Pereira
Marcos Gomes da Silva
“Pelos nossos mortos nenhum minuto de silêncio, mas uma vida inteira de luta”.
De um lado, muitos Josés, Marias, Adelinos, Hereniltons, Marcos, lutando para preservar o que ainda resta das nossas matas, contra o contrabando de madeira, a produção ilegal de carvão, a concentração de terras. São indígenas, quilombolas, pomeranos, Sem Terra, ribeirinhos, pescadores, que muitas vezes precisam expor suas vidas, já que o que defendem não corresponde aos interesses econômicos e hegemônicos do país. Interesses esses que são defendidos pelos ruralistas, pela direita, pelo capital, sujeitos capazes de destruir não só a floresta, mas a vida humana.
Choramos quando vemos árvores atrás de árvores sendo derrubadas. Mas é difícil dizer o que sentimos quando pessoas são mortas por defenderem a vida. Atos bárbaros como esse despertam forte indignação. Jamais poderíamos permitir que acontecessem, e jamais podemos achar natural e nos calar.
Se contra nossas palavras, nossas denúncias, nossos gritos que reclamam justiça; se contra nossas ações, que, por defenderem a vida, dizem – chega a destruição do planeta – gerada pelo desmatamento, pela poluição, pela destruição das nossas riquezas, e causado pela ambição do homem; se contra tudo isso não há argumentos racionais, eles tentam nos calar roubando a nossa vida.
Mas nós somos povo, somos muitos, temos força, continuaremos levantando as nossas bandeiras, e não deixaremos passar em vão a morte de cada trabalhador e de cada trabalhadora que lutar contra esse sistema que nos maltrata de tantas formas, de todas as formas possíveis.
Não ficaremos em silêncio, nossa vida é luta.
[1] “Canção do Tamoio”.
[2] “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2008, p.170-171.
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