terça-feira, 30 de junho de 2015

REBAIXAMENTO DA MAIORIDADE PENAL: O RISCO DE UMA SOCIEDADE DESISTIR DE SI MESMA[1]

Se aprovada essa violação da Constituição, a segurança não vai aumentar: o que vai aumentar é a violência. E a capacidade da sociedade brasileira de produzir crime disfarçado de legalidade.
(Eliane Brum[2])

Estamos hoje reunidos para discutir o rebaixamento da maioridade penal. Dizem as pesquisas que a maioria da população brasileira aprova a medida. Há outros temas da agenda política nacional na pauta da mídia e dos políticos, que parecem exigir vigilância e tomada rápida de posição, como se estivéssemos sempre atrasados, diante do “fulgor progressita” que tomou conta dos políticos do Congresso Nacional: o projeto de terceirização, a proposta de reforma política e a ameaça de regularização do financiamento privado das campanhas, o estatuto da família, as mudanças legais propostas pelos ruralistas para demarcação de terras indígenas e quilombolas...
            Quem pauta os temas que estão mobilizando o debate nacional? Essa é uma questão importante para entendermos a correlação de forças. É uma agenda conservadora, no sentido de conservar estruturas morais, valores e códigos legais ou uma agenda transformadora a partir do interesse da maioria da população brasileira?
            Analisar quem são os proponentes, o que eles defendem em termos de projeto para o Brasil, quem financia suas campanhas, e quem publiciza essas pautas na mídia é um bom procedimento para dar resposta a isso.
            A bancada da bala, composta por políticos que defendem políticas repressivas, o rebaixamento da maioridade penal, a desburocratização para a compra de armas pela população civil, é composta por deputados e senadores que têm entre os financiadores de suas campanhas as empresas que produzem armas, interessadas, obviamente, em vender armas (!). São do mesmo grupo os defensores da bancada do Boi, os financiados pelas corporações transnacionais do agronegócio, que defendem o monocultivo em larga escala para exportação, com alto uso de veneno na lavoura e, em geral, são do mesmo grupo os que se auto-representam como os defensores dos valores tradicionais, da moralidade, os dos grupos de influência de setores da igreja católica e evangélica. Me refiro à bancada do BBB: Bala, Boi e Bíblia[3].
            Quem é dono do jogo impõe a regra: isso tem nos obrigado a jogar de forma reativa, defensiva. As pautas aceitas como polêmicas e disseminadas pela mídia são aquelas filtradas pela grande imprensa empresarial. Por que saiu da pauta da mídia e das universidades a mácula de termos no país cerca de 14 milhões de analfabetos, mais que a população total da maioria de nossos países vizinhos? Por que o latifúndio não é abordado como um absurdo pela imprensa de um país que tem cerca de 1% dos proprietários de terra concentrando mais de 46% das terras agricultáveis do país? Porque o genocídio da população jovem negra não é tratado como uma questão de calamidade pública, uma pauta emergencial?
Num país como o Brasil, que foi o último do mundo a abolir a escravidão, tem metade da população negra, é um dos países mais desiguais em distribuição da renda e da terra, e tem uma taxa exasperadora de homicídio da população jovem negra (existe até uma CPI para tratar do tema no Congresso Nacional) em que espectro do campo político se encaixa a proposta do rebaixamento da maioridade penal?
            Segundo a jornalista Eliane Brum:

A cada ano, uma parte da juventude brasileira, menor e maior de idade, é massacrada. E a mesma maioria que brada pela redução da maioridade penal não se indigna. Sequer se importa. No Brasil, sete jovens de 15 a 29 anos são mortos a cada duas horas, 82 por dia, 30 mil por ano. Esses mortos têm cor: 77% são negros. Enquanto o assassinato de jovens brancos diminui, o dos jovens negros aumenta, como mostra o Mapa da Violência de 2014.
           
Para tornar essa situação absurdamente desigual sustentável no decorrer do tempo é preciso embrutecer essa sociedade, na base da força quando necessário, e para os jovens da periferia isso é a regra, na base da precarização permanente do sistema educacional, na base do esvaziamento dos processos de representação política participativa e popular, em prol de uma comunicação entre políticos e sociedade pautada pelas leis do marketing. O embrutecimento social, agravado com a junção entre a crise econômica e política, acelera dinâmicas de pretensão fascistas na sociedade brasileira, em que a violência se interpõe entre as classes, aprofundando as cisões sociais, acirrando o ódio de classe, tornando cada vez mais distante o sentido de nação, de sociedade brasileira.
A jornalista Eliane Brum aponta que:

Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Mas são eles que estão sendo assassinados sistematicamente: o Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes, atrás apenas da Nigéria. Hoje, os homicídios já representam 36,5% das causas de morte por fatores externos de adolescentes no país, enquanto para a população total corresponde a 4,8%. Mais de 33 mil brasileiros de 12 a 18 anos foram assassinados entre 2006 e 2012. Se as condições atuais prevalecerem, afirma o Unicef, até 2019 outros 42 mil serão assassinados no Brasil. Quem está violando quem? Quem não está protegendo quem? Quem deve ser responsabilizado por não garantir o direito de viver à parte das crianças e dos adolescentes?
Mantendo a lógica estabelecida na época da escravidão, os trabalhadores assalariados se miram e se articulam com os donos dos meios de produção, e não se solidarizam com os trabalhadores das classes populares e suas pautas. A classe média se sente lesada em seus salários pelo recurso investido nas políticas sociais. Entende isso como favor, como assistencialismo, e não reconhece a magnitude do gesto de apoio financeiro que o Estado brasileiro executa em todos os governos para alimentar os setores do agronegócio, da construção civil, do sistema financeiro, etc.
Entretanto, apesar dos dados pessimistas da conjuntura, vale para nós pensarmos que o Congresso Nacional só se tornou o mais conservador dos últimos tempos porque, de certa forma, teve que se contrapor ao movimento convulso de uma sociedade que busca de forma angustiada, ora nas ruas, nos campos e nas cidades, ora nas redes sociais, meios de se expressar de forma ativa. Foi preciso despejar muitos milhões de reais de empresas privadas para garantir no Congresso Nacional os políticos que representam os intereses das grandes empresas e dos setores mais conservadores da sociedade brasileira.
Contra tudo isso é possível se organizar. Por ter feito parte dos movimento estudantil, durante meu período de graduação, tomo a liberdade de fazer algumas sugestões para que avaliem nos espaços de debate e deliberação de vocês:

1) Organizem o sujeito coletivo do movimento estudantil dos estudantes do campo.
Quando estamos desorganizados, como indivíduos, somos mais vulneráveis ao discurso dominante, à imposição da pauta e dos valores dominantes. Por isso, fortaleçam os espaços coletivos de discussão, para que a tomada de decisões seja enriquecida pelo debate, para que formem uma massa crítica interna, que filtre, interprete e organize a agenda política de vocês.

2) Construam a pauta prioritária de interesse do seu segmento e definam ações de curto, de médio e de longo prazo para a luta do movimento estudantil.
            Não sejam apenas pautados por outras agendas. O movimento estudantil não anda atrás do governo, porque o governo sofre pressão de forças maiores que as que vocês hoje são capazes de exercer, então, se querem que a pauta de vocês seja abordada, avaliada e encaminhada, devem se organizar para impor a pauta, e não vão conseguir fazer isso se não for com força e unidade nacional.
            Não custa lembrar: as escolas do campo estão fechando em escala crescente em razão da expansão do monocultivo decommodities agrícolas, isso implica que devem lutar com as forças organizadas nos territórios, caso queiram defender o espaço em que poderão exercer o ofício posterior de profesores do campo. Devem, portanto, lutar por seus postos de trabalho, pois também eles estão ameaçados.
            E, na educação superior, menos de 40% da oferta de vagas ocorre em instituições públicas. O mercado do ensino superior privado oferta a maioria das vagas e esse sistema é alimentado por verba pública, por meio de programas como o Prouni. Logo, lutar pela Educação do Campo é lutar pela universidade pública, pelo projeto de país que abriga essa demanda que, certamente, não poderia ser assimilada da mesma forma pelo sistema privado.

3) Definam quais são os aliados táticos e os parceiros estratégicos e se lancem na construção de alianças conjunturais e ou duradouras.
            Os estudantes do campo não devem ficar isolados das demais representações estudantis, dos movimentos sociais do campo e da cidade, e de todas as formas de organização coletiva e popular com que possam se articular e fortalecer suas lutas.

4) Criem redes para receber as próximas turmas e fazer com que o acúmulo da experiência seja transmitido com mais velocidade e eficácia para os que estão chegando, de modo que potencialize a formação política e a organização social entre vocês. A alternância é um proceso difícil, que pode gerar conflitos de diversas dimensões nas casas dos educandos, de gênero, na leitura política que os estudantes fazem das relações sociais em que estão inseridos, e esse processo de transformação, de revolvimento das estruturas internas de cada um precisa encontrar uma escuta atenta, afetiva, política, que permita a criação da identidade de classe desse sujeito coletivo em processo de construção e transformação.

5) Ampliem e fortalecam cada vez mais o diálogo com os movimentos sociais do campo.
            Foram eles, representando trabalhadores e trabalhadoras de todo o Brasil, que demandaram esse curso. E não para que as pessoas entrem aqui e assimilem a meritocracia, os valores individuais da competição entre si, a expectativa pela solução individual para seus problemas. A expectativa desses grandes sujeitos coletivos organizados que demandaram esse curso corre no sentido contrário: o de que possamos abrir as portas da universidade para a população brasileira.

Enfim, para fecharmos retornando ao tema do rebaixamento, temos notícias de lutas bem sucedidas que conseguiram refrear a pauta conservadora e o bloqueio midiático. Nossos amigos do Grupo de Teatro do Oprimido de Montevideo, por exemplo, fizeram uma peça de Teatro Jornal, “Não é um problema menor”, e se lançaram na campanha contra o rebaixamento somando forças com a frente “Comisión Nacional No a la Baja”, debatendo com diversos segmentos, em diversos espaços, de todas as cidades do Uruguai. Resultado vitorioso do plebiscito: 53% contra o rebaixamento e 47% a favor. Logo, o retrocesso não é inevitável, a luta coletiva, organizada, articulada com outras forças, engendra vitórias.
Mas para isso é preciso que a estratégia de luta seja evidente para todos e todas, que as táticas sejam elaboradas de acordo com os desafios, e as vitórias que possamos ter nessa conjuntura de luta na condição defensiva, para não avançar o conservadorismo, sejam norteadas pela linha no horizonte de um projeto político para o país, construído com o empenho de muitas forças populares, que compartilhem suas demandas, seus acúmulos e seus sonhos. Esse é um caminho possível, árduo e por isso prazeroso, de construirmos um sentido de futuro que não nos obrigue a desistir de nós mesmos, enquanto sociedade.
Rafael Villas Bôas
Professor da Licenciatura em Educação do Campo
Universidade de Brasília
Planaltina, 24 de junho de 2015.


[1] Na Licenciatura em Educação do Campo da UnB há o Tempo Organicidade, experiência herdada dos movimentos sociais do campo, e da parceria com o Instituto Técnico em Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra). Numa das atividades desse tempo, a plenária das turmas, o tema do rebaixamento da maioridade apareceu e os estudantes decidiram pautar como tema da análise de conjuntura semanal. O texto que segue é fruto da análise e debate posterior, realizado com as turmas 6 e 8 do curso, no dia 19 de junho de 2015.
[2] BRUM; Eliene. Para Brasília, só com passaporte. In http://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/30/opinion/1427726614_598600.html acessado em 24 de junho de 2015.
[3] Segundo reportagem do Estado de S. Paulo, a bancada da bala tem 275 parlamentares. A ruralista, 198, e a evangélica, 74. Vinte parlamentares atuam nas três, entre eles Cunha, que é evangélico. Nas frentes da "bala" e do "boi" há 105 deputados simultaneamente. E 22 congressistas estão nas frentes da "Bíblia" e da "bala" ao mesmo tempo”. In Portal 247, acessado em 26 de abril de 2015.

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