segunda-feira, 14 de março de 2011

UnB e território Kalunga: articulação numa terra sem cercas

Professores do campus de Planaltina relatam experiência vivida por alunos de Educação do Campo no maior território quilombo
Ana Laura dos Reis Corrêa e Rafael Litvin Villas Bôas* - Da Faculdade UnB Planaltina

No território dos Kalunga, o maior quilombo do mundo, com 254 mil hectares, as casas da área central da vila da comunidade Engenho II não são separadas por uma cerca. A sensação que o espaço causa a quem vive em áreas urbanas ou na periferia rural, tão espremidos pelos limites estreitos da lógica da propriedade privada, é a da percepção de uma significativa diferença: em Engenho II, todos moram na mesma terra, podem ir e vir sem os obstáculos das fronteiras individuais. A propriedade da terra é coletiva, luta garantida por decreto presidencial, consequência da obstinação de gerações de afrodescendentes que romperam os elos da escravidão ao criarem as comunidades quilombolas do território Kalunga.
A singularidade desse território e de seu povo foi um dos motivos pelos quais professores e estudantes da segunda turma do curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC) da UnB decidiram, em parceria com a comunidade, fazer, entre os dias 21 a 24 de fevereiro de 2011 na Comunidade Engenho II do Território Kalunga, uma atividade de Tempo Comunidade (TC) do 5º semestre. Na pedagogia da alternância, o tempo letivo do semestre é dividido em dois, com carga horária ministrada na universidade e outra parte com ações de inserção orientada na escola e na comunidade, com acompanhamento docente. No quilombo residem dez educandos da Licenciatura em Educação do Campo da UnB.
A concepção de TC construída entre educadores e educandos do curso pressupõe o protagonismo dos estudantes no planejamento, articulação e execução de ações em suas escolas e comunidades. Segundo Mônica Molina, coordenadora da LEdoC, “a presença dos docentes da FUP, na área Kalunga, materializou princípios relevantes da Educação do Campo: trabalhou com os sujeitos camponeses, em seu território, promovendo intencionalmente a articulação escola/comunidade", afirma. "Entre os objetivos da LEdoC, encontra-se o de contribuir com a mudança na forma de utilização e produção do conhecimento científico nas escolas do campo, normalmente, em profunda desarticulação com a vida dos sujeitos camponeses, a eles apresentado como inacessível e inapropriável”. 

ESCRAVIDÃO - A abertura da atividade foi marcada por uma apresentação teatral de um grupo de 28 jovens da comunidade, sobre a história da luta e do povo quilombola. “Não foi uma peça que anestesiou a nossa percepção da realidade, foi uma peça complexa, assim como a realidade é complexa”, disse a educanda Gleciane Cezário Machado, do Assentamento Itaúna, de Planaltina de Goiás. A representação do estupro e da miscigenação é exemplo de solução cênica não dramática, pois o grupo optou por não dramatizar a obviedade da violência da ação do estupro: as mulheres são levadas para fora de cena pelos homens e duas delas, uma índia e uma negra, retornam com bonecas brancas como bebê, com gestos carinhosos acolhem os bebês e são acolhidas por suas comunidades.
Na disciplina de Teatro, a apresentação do grupo de jovens da comunidade na noite de abertura deu a linha do trabalho: primeiro, debateu-se a peça em sua dimensão estética e política com a presença dos integrantes do grupo e professores da LEdoC, em seguida, estudantes da UnB e integrantes da comunidade desenvolveram juntos um processo de trabalho com exercícios de improvisação teatral e jogos do teatro do oprimido, pesquisando os termos da escravidão e dominação nos dias de hoje: alienação, sujeição ao consumismo imposto pela indústria cultural e exploração pelo trabalho assalariado.
Os professores da área de Ciências da Natureza e Matemática (Ciema) atuaram em conjunto, buscando a integração dos conhecimentos de suas disciplinas específicas nas aulas de GPS e cartografia, e de levantamento fitossociológico. Segundo Susanne Maciel, professora de Matemática da LEdoC: “Na última etapa de Tempo Escola (TE) os estudantes de Ciema cursaram a disciplina Geometria, óptica e percepção do espaço, cujos conteúdos foram exercitados na atividade prática de cartografia e GPS". Os estudantes também fizeram um levantamento fitossociológico em uma parcela de mil metros quadrados, que consiste em registrar a ocorrência de árvores e arbustos da região. Os dados são então trabalhados em planilhas eletrônicas, nas quais são realizados cálculos de densidade, frequência e dominância das espécies arbóreas e arbustivas. "Essa atividade fornece informações sobre a diversidade vegetal da área, indicando como é a distribuição das árvores e quais espécies são mais abundantes e importantes na composição da comunidade vegetal amostrada", diz a professora. 

O professor de Biologia da LEdoC, Tamiel Khan Baiocchi Jacobson, explica a articulação entre as disciplinas da área e o saber popular na atividade de levantamento fitossociológico: “O reconhecimento das plantas e de suas propriedades medicinais são de responsabilidade dos estudantes da região e de membros da comunidade. Uma de nossas estudantes, que é também professora do Ensino Médio, já está transpondo essa atividade com seus alunos nos arredores da escola”.
No trabalho com os múltiplos letramentos, a professora de Linguística da LEdoC, Rosineide Magalhães, evidenciou a relação entre língua e poder, por meio da análise das experiências relatadas pelos estudantes. Por exemplo, o relato sobre um concurso de redação proposto por uma multinacional do agronegócio que recém se instalara na região de Formosa para as escolas do campo da região, cujo tema foi o correto manuseio dos equipamentos de proteção para a aplicação de agrotóxicos. “As atividades realizadas na comunidade Kalunga demonstram uma experiência real de múltiplos letramentos extraída dos conhecimentos letrados de diferentes áreas, principalmente da memória e da realidade social, linguística, cultural e identitária dessa comunidade, vislumbrando o que é de fato partir da realidade do educando para promover uma educação contextualizada”, diz a professora. 

DESAFIOS - Os desafios pautados pela experiência foram o de promover a descentralização da universidade e o de aprofundar o diálogo na universidade para além dos indivíduos que nela se inserem diretamente. Durante o processo de socialização e avaliação dos trabalhos das áreas de habilitação, tais desafios se fizeram presentes no seguinte sentido: como o conhecimento científico pode contribuir com os imensos desafios enfrentados atualmente pelos sujeitos do campo? Especialmente no caso dos educandos do território Kalunga, como a escola pode contribuir com o enfrentamento das grandes questões que ameaçam a permanência dessa comunidade em seu território, tais como a ameaça de devastação ambiental provocada pela ação das mineradoras, o desmatamento da floresta para venda ilegal de madeira, a poluição dos rios pela ação ilegal de dragas de exploração de minério, e a ação predatória do turismo ostensivo, sem planejamento e diálogo com a comunidade? Ao promover o debate sobre tais questões, a partir das contradições enfrentadas no dia a dia desta comunidade, articulando a elas as questões específicas das áreas de conhecimento, avançamos mais um pouco na vivência concreta dos princípios da Educação do Campo.

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